Em
Fil. 2,7 se diz: “Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a
Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e
assumiu a condição de servo”.
Quando
a Escritura diz: “Ele tinha a condição divina”, isto significa afirmar que Jesus
Cristo é Deus; e quando diz: “Ele não considerou o ser igual a Deus como algo a
que se apegar ciosamente”, isto significa afirmar que Jesus Cristo, mesmo sendo
de natureza divina, não fez disso uma usurpação, um engrandecimento, um
privilégio, uma superioridade pessoal. Com efeito, Jesus Cristo nunca disse aos
discípulos: Eu sou Deus. Quando Pilatos lhe perguntou se era o Filho de Deus,
Sua resposta foi: “Tu o dizes”. Na cruz, quando seus algozes o maltrataram, não
lhes disse: “Eu sou Deus; que vocês se danem”. Pelo contrário, pediu ao Pai em
público: “Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Portanto, Ele não fez de Sua
divindade um enaltecimento ou, como diz o texto sagrado, “não fez de seu ser
igual a Deus algo a que se apegar ciosamente”. Sua atitude, segundo o texto
sagrado, foi simplesmente “de esvaziamento de si, foi de servo (esta foi Sua
condição), foi de humildade, foi de minoridade, foi de pequenez”. A cruz de
Jesus Cristo no-lo prova.
Pois
bem, na Quarta-Feira de Cinzas, iniciou-se o tempo da Quaresma. E o que é a
Quaresma? Partindo da Palavra de Deus, dado que a Igreja nasce e vive dela e
sobre ela se funda, eu respondo: a Quaresma é tempo de kénosis e de káris. Isto
é, tempo de esvaziamento de si e de preenchimento em si da graça divina. Trata-se do esvaziamento
do nosso eu, do nosso orgulho, de nossa vaidade, de nossa promoção pessoal, de
nosso sentimentalismo (kénosis) e do preenchimento
em si da graça divina (Káris) que nos socorre e fortalece. Nosso orgulho e nossa vaidade, nossas promoções
e prerrogativas pessoais, enfim, o
querer ser mais que o outro, tudo isso tem de ser trabalhado, porque não condiz
com a espiritualidade da Quaresma, porque não sinaliza esvaziamento de si, mas
enchimento vicioso de si que nos afasta da vida espiritual.
Sem
dúvida alguma, o “apelo que o tempo da Quaresma nos faz é incômodo”. Afinal,
“convertei-vos e crede no Evangelho” é um imperativo de Jesus que exige de nós
mudança de vida e adesão ao que Ele nos ensina. E não há mudança no homem e na
mulher sem luta consigo mesmo.
Ora,
sendo, pois, a Quaresma tempo de batalha espiritual, convém destacar que a kénosis nos faz este alerta: “A vida é
como “trabalho contra a gravidade”. Como assim? Vou explicar: no sentido de que
se a gravidade é a força que atrai para o centro da terra todos os corpos de
maneira natural, então “o homem não cresce humana e espiritualmente deixando-se
levar simplesmente, entregando-se à gravidade natural do seu mero andar
vivendo, mas vem a constituir-se sempre apenas na força da disciplina que sabe
libertar-se das imposições de cada dia, que se eleva acima da coação dos fins e
dos instintos”. Desse modo, “só onde há trabalho contra a gravidade haveria
vida e onde ele acaba também a vida estaria apagada. Se isso é verdade no
âmbito biológico, muito mais o é no espiritual”.
Encarar
“a vida como “trabalho contra a gravidade” é, de fato, uma boa imagem que nos
ajuda a constatar quão indispensável é o valor da disciplina consigo mesmo
contra as lacunas e quedas existenciais.
Assim
como os aviões no ar, por exemplo, desafiam a lei da física ou o centro da
gravidade, também nós devemos desafiar a gravidade do nosso mero ir vivendo,
que é só comer, beber, passear, dormir, comprazer-se, fazer os próprios gostos,
enfim, devemos desafiar a gravidade do centro concupiscente do nosso eu. Diz o
livro do Eclesiástico que para tudo há um tempo. Ora, se Deus é tudo, então deve haver um tempo
também para Ele. A luta da vida contra a gravidade do nosso bem-estar no embalo
do deixe a vida me levar aponta para este conselho: “É preciso vencer a si
mesmo, para ver mais a fundo e tornar-se livre da ditadura das coisas só de
primeiro plano”. Por que é preciso vencer a si mesmo? Porque o deixar-se levar
é próprio da gravidade natural, e é assim que a maioria do povo se comporta;
não se deixar levar é próprio da vida no seu trabalho contra a gravidade.
A
Quaresma enquanto tempo de graça é para nós, portanto, apenas um tempo
litúrgico que deve nos sensibilizar cada vez mais para viver o seu apelo ao
longo da vida: apelo ao sacrifício, apelo à renúncia, apelo à oração, apelo à
comunhão fraterna, como manifestação concreta da nossa sincera piedade e
amizade com Deus; apelo ao amor, que se revela na libertação dos sentimentos
negativos de rancor.
Que
a kénosis do Filho de Deus, exemplo de baixeza sem diminuição alguma de Sua majestade;
exemplo de humildade e minoridade – para ensinar-nos que a soberba, a
arrogância e a grandeza nos diminuem –, seja para nós uma constante aula na
caminhada Quaresmal! E que a graça de Deus seja o auxílio contínuo nesta tarefa
de luta contra a gravidade atrativa do centro do nosso eu! Na kénosis nos elevamos; na káris nos fortalecemos. Amém!
Frei José Luís Leitão, ofmcap.
Vice-Diretor do IESMA (Instituto de
Estudos Superiores do Maranhão).
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